23.11.07




Pérola do Analfabetismo Jornalístico du Jour

Manchete de O Globo Online:

Chávez agradece Lula por apoio para Mercosul

O português não tem mais regência verbal, está virando língua de uga-uga, me tarzan you jane.

Eu queria mesmo era saber quem foi que deu o Lula de presente ao Chavez, pois, segundo a regência do verbo agradecer, o correto seria Chavez agradece A Lula. Do jeito que o néscio escreveu, o Chavez ganhou o Lula de presente!

Pelo menos na imprensa deveria haver zelo pela linguagem, pois uma de suas obrigações é transmitir as notícias com clareza. Trocar as regências verbais distancia os jornalistas da clareza, mas quem ler os jornais com atenção vai encontrar atentados como esse aos montes, diariamente. Será que é proposital? Os jornais estão com a intenção de analfabetizar ainda mais o povo brasileiro?

O que me deixa mais aborrecida é saber que não receberei resposta nunca.

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11.11.07




Tradução erradíssima du jour

Estava na sala tomando um café com leite e vendo o filme Como se fosse a primeira vez, que está passando na Globo, talvez pela milionésima vez. Sou fã do Adam Sandler e resolvi ficar assistindo, mesmo depois que o café acabou. Sempre que esse filme passa, assisto a trechinhos e volto ao trabalho. O trechinho de hoje eu nunca tinha visto. A certa altura, começa a tocar Another Day do Paul McCartney, cuja letra sei de cor desde os 15 anos de idade.
O filme está dublado, mas a música foi legendada. Pelo sotaque dos dubladores, foi dublado no Rio (pode ser que não, já que hoje em dia há trabalhos compartilhados, mas neste filme as vozes são 100% cariocas).

Quando entraram as legendas eu estava despreparada para anotar qualquer coisa, portanto só pude decorar uma delas e corri para o escritório. Vejam a calamidade!

Original:
Slipping into stockings, stepping into shoes *
(Acho que a tradução poderia ser mais ou menos assim: Desliza os pés para dentro das meias e calça os sapatos. Ou algumas outras alternativas, que é o tipo de frase que admite isso.)

Quem legendou a música só fez confirmar o que sempre digo: quanto maior é o número de dicionários acessíveis, até mesmo de graça, na internet, maior é o número de ignorantes que não os consultam nunca! Além do mais "slipping into stockings" e "stepping into shoes" são frases de uma clareza praticamente cinematográfica na letra dessa música. Mas vejam a legenda:

Escorregando em meias, tropeçando em sapatos!

O que uma criatura dessas pretende? Minha nossa! E ainda tem gente por aí fazendo questão de bradar aos 4 ventos que as legendas estão cada vez melhores! Será que se referem à cor dos caracteres, que estão mesmo mais legíveis hoje em dia? Só pode ser, pois aquilo que li é um aleijão!

Em vez de moça organizada e arrumadinha, que vive uma rotina super monótona todos os dias, o nosso legendeiro improvisado transformou a coitada em uma criatura desmazelada, que espalha meias e sapatos pelo chão da casa. A isso denomino falta de responsabilidade total e irrestrita na tradução! Se eu fosse o Paul McCartney e tomasse conhecimento dessa tradução grosseira, juro que processaria os (ir)responsáveis por ela.

O que me revolta ainda mais é que essa porcaria passou por MUITOS olhos, passou até pelo "controle de qualidade" da Globo, que tem mania de rejeitar dublagens por qualquer bobagem, até pela falta de um batimento cardíaco.

Esse povinho que defende as legendas porque a qualidade anda maravilhosa não entende inglês, com toda certeza!


Só posso encerrar com uma frase do Umberto Eco que resume tudo o que eu sempre disse e todas as minhas batalhas (por sinal, sempre perdidas) no tocante à responsabilidade dos tradutores: Sempre considerei que a tradução propriamente dita é uma coisa séria, que impõe uma deontologia profissional que nenhuma teoria desconstrutivista da tradução poderá neutralizar.



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* (c) Copyright 1971 by Paul and Linda McCartney. McCartney Music, Inc., owner of
publication and allied rights of Linda McCartney throughout the world except
United Kingdom. All rights reserved.


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7.11.07




Já salvou uma palavra hoje?

Quando era criança conheci muitos escoteiros, lobinhos, fadinhas etc. Não sei onde foram parar, pois nenhuma das crianças que conheço hoje em dia sabe o que é escotismo. Por que me lembrei dos escoteiros? Porque eles me contavam que tinham a obrigação de fazer pelo menos uma boa ação por dia. Essa idéia me remete à nossa língua. E se a gente fizesse pelo menos uma boa ação por dia com relação à língua portuguesa? Garanto que poderíamos ressuscitar um monte de palavras que correm risco de extinção.

A inexistência de ensino da língua portuguesa nas escolas já produziu algumas gerações de jornalistas e escritores analfabetos funcionais. Parece paradoxal afirmar que jornalistas e escritores são analfabetos funcionais, mas é isso mesmo, foi nisso que se tornaram, o amado leitor e a estimada leitora não entenderam mal.

À inexistência de ensino do português nas escolas se soma a imersão no inglês ainda em tenra idade. O primeiro contato que os jovens têm com as regras gramaticais, sintáticas e estilísticas acontece nas aulas de inglês. É preciso aprender inglês para poder trabalhar, mas o jovem só aprende inglês, ignora o vernáculo. E o pior dessa situação é que a maioria só pensa que aprendeu inglês, pois o que acredita saber é aquilo que nos outros países denominam Brazilian English com enorme desdém. Foi essa turma que acredita saber o que não sabe que inventou a expressão no break para denominar um aparelho que, lá na matriz, se chama UPS - Uninterruptible Power Supply. Experimente usar a expressão no break em conversa com angloparlantes que não saibam português. O interlocutor não vai entender nada!

É nesse ambiente que se cria a nova geração de tradutores do Brasil. Desconhecem as regras do português - na verdade, desprezam-nas, pois só tem valor o que está in English - e acreditam saber inglês - mas isso não passa de fantasia. Aprendem nos cursinhos de inglês que o chique é não usar dicionário pra nada e acabam cimentando achismos. Por exemplo, essa turma acha que a única tradução possível de The book is on the table é O livro está sobre a mesa. É muito mais idiomático dizer que o livro está na mesa ou, melhor, em cima da mesa, mas ensinaram a essa turminha que on é sobre, então tá, né? Ensinaram que find é achar, então ninguém imagina que também pode ser procurar. Quando se diz go find my shirt, em português costumamos dizer vá procurar minha camisa, mas a turminha do the book is on the table vai de vá achar minha camisa, como já ouvi e li trocentas vezes em filmes e livros. É duro de engolir.

Mas já estou tergiversando. O assunto principal é a boa ação. Pois é. A boa ação desta semana poderia ser a seguinte:
- Usar pelo menos uma vez os pronomes possessivos dele ou dela, em vez de seu ou sua. Ou, caso dele ou dela sejam excessivos, substitua seu ou sua pelo artigo definido correspondente.

Exemplos? Tá. Lá vai:

Maria saiu com o seu marido. Marido de quem, cara pálida?
Maria saiu com o marido dela. A frase deixou de ser ambígua, mas ficou redundante.
Maria saiu com o marido. Pronto! Lindo! Divino! Maravilhoso! Maria não corre mais o risco de levar uma surra de alguma esposa traída e fica claro como a água que jorra da fonte que o marido que saiu com Maria foi o dela, e não o da amiga.

Outro exemplo:

She put her hand on her head está claríssimo em inglês, aí chega a turma da tradução e tasca ela pôs a sua mão na sua cabeça. Danou-se! Não é exagero! Juro que a turma do decalque só traduz assim! Ela botou a mão na cabeça estaria tão claro quanto no inglês, não é mesmo? Está claro que a mão era dela! Se não fosse dela, aí seria obrigatório dizer de quem era. O artigo definido expressa exatamente a idéia de que o objeto pertence à pessoa de quem se fala. Em português fluente a gente diz que João quebrou a perna, e não que João quebrou a sua perna. Esse sua é um corpo estranho ali, dá a impressão de que a perna é de outra pessoa, e não do João, pois se fosse dele mesmo, bastaria dizer João quebrou a perna. Ambas as frases estão gramaticalmente perfeitas, mas não é só de gramática que se faz uma língua!

Como diriam os anglos: it's the style, stupid!

E quando devemos trocar seu e sua por dele e dela? Também é para desfazer a ambigüidade. Por exemplo: his book pode ser seu livro, mas fica ambíguo; melhor é dizer livro dele, não é mesmo? Por exemplo: This is his book. Este livro é dele, e não Este é o seu livro, concordam?

Vamos preservar a vida de dele, dela, deles, delas? Usem um dele, dela, deles, delas pelo menos uma vez por semana no lugar desse cacoete horroroso de só usar seu e sua. Que tal? Não dói!

O uso do artigo definido em substituição ao pronome possessivo é uma característica singular da língua portuguesa e sempre foi praticado sem necessidade de curso de especialização. O excesso de traduções e, em conseqüência disso, a escassez de tradutores competentes, levou ao uso indiscriminado do decalque. Em inglês, o uso de my, your, his, her, their etc. é massificado, mas as características da língua o exigem. Os falantes de inglês morrem de inveja desses recursos lindos que a língua portuguesa oferece, dessa riqueza sintática que só as línguas românicas têm, mas os falantes das línguas românicas, por não ter o mapa da mina, acabam invejando a falta de recursos do inglês, que exige a repetição incessante de pronomes, pessoais e possessivos, justamente por não contar com as desinências das pessoas verbais e com o artigo definido para designar o que é próprio da pessoa que fala ou de quem se fala.

Vamos traduzir, minha gente, mas, por favor, não vamos desfigurar o português!

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