25.9.10




Carta do Nelson Machado

Hoje recebi um email do ator, dublador e tradutor Nelson Machado, um dos melhores dubladores do Brasil, famoso por tantas vezes ter emprestado a voz ao Robin Williams, ao Wesley Snypes, ao Roberto Bolaños (o Quico) e a tantos outros astros. Ele expõe a situação atual dos dubladores no Brasil, mas, se trocarmos no texto dele a palavra "dublagem" por "tradução" veremos ali também o nosso retrato. E se trocarmos por diversas outras profissões também veremos ali o retrato de todas essas profissões.

É difícil mesmo compreender por que tanta gente vai se apequenando cada vez mais e mais e mais e mais. O Nelson diz "A Dublagem é o único ramo de atividade que conheço que briga pra valer cada vez menos!" Não é só a dublagem! Basta visitar qualquer site como o Proz.com, por exemplo, para ver que o que ele diz da dublagem se aplica à tradução. É cada vez maior a pressão para que o nosso preço caia para um centavo por palavra e, também, cada vez maior o número de pessoas que, ao se sentirem intimidadas, cedem às pressões. Os tradutores literários e de entretenimento também são artistas, iguaizinhos ao Nelson!

Convido os leitores a ler o texto do Nelson e refletir, nem que seja só um pouquinho. Seria interessante conhecer a sua opinião. Aqui está o texto do Nelson (o texto a que ele se refere é uma carta anônima que recebeu e que, por ser anônima, não merece divulgação):


Tudo muito bonito e boa parte do texto carregada de razões.
Mas perde por dois aspectos...
O primeiro é que um texto anônimo conclamando a atitudes valentes, corajosas, é um paradoxo! Ora, o autor nem tem coragem de assinar seu texto, como pode sequer sugerir que eu deva ter coragem para lutar pelas idéias dele?
O segundo é pessoal. Concordo que tudo devia ser mudado. Que devíamos jogar fora tudo o que temos e tudo o que nos regulamenta para começarmos do zero. Mas para que tenhamos confiança nisso, seria preciso, PRIMEIRO, que essas coisas antigas fossem cumpridas. Ora, não se cumpre nada do que se combina (EM NENHUMA CASA!) e querem que eu concorde e ajude a criar um novo sistema? Isso me cheira a uma proposta de institucionalizar o não cumprimento! E se o que está acordado já me parece aquém do que mereço ou do que valho, por que eu iria me mobilizar pra oficializar que valho menos ainda?
A Dublagem é o único ramo de atividade que conheço que briga pra valer cada vez menos! Tanto profissionais quanto estúdios!
O que querem? Novas regras que tornem decente o fato do SBT utilizar minha voz numa série de sucesso há 26 anos sem nem me convidar pra almoçar? Um novo regulamento que torne decente o sujeito que aceita me substituir no meio de uma negociação?
Todas os setores da economia negociam. Até mesmo o nosso, em outras áreas. O garoto que faz Malhação não tem o mesmo valor do Fagundes ou do Stênio Garcia dentro da Globo. Quem fez ponta como presidiário no Carandirú não teve o mesmo valor do Rodrigo Santoro. O menino que dividiu palco com o Paulo Autran não teve um salário nem da metade do valor do dele. Por que só a dublagem deve ser medida com igualdade socialista? Por que todos os dubladores devem valer a mesma coisa? Por que todos os estúdios devem cobrar o mesmo?
Uma blusa no Torra-Torra não pode ter o mesmo valor de uma blusa da Daslu. Um comercial no boteco da esquina não tem o mesmo preço de uma refeição no Terraço Itália. O ingresso de uma pecinha infantil num teatrinho alternativo de bairro não pode custar a mesma coisa que o ingresso do Fantasma da Ópera. Por que só a Dublagem tem que ser nivelada? E sempre por baixo?
Vamos nos juntar, sim. Vamos nos unir. Mas como se uniram, há algumas décadas, as empresas de laticínios. Todos se juntaram e vimos, durante meses, a campanha em outdoors, em rádio, em televisão, dizendo simplesmente: BEBA LEITE! Depois que o povo todo ficou convencido de que não se pode viver sem leite, aí cada empresa cuidou do seu negócio. E CADA UMA COM O SEU PREÇO! Sem ninguém acusar ninguém de nada. O pobrezinho compra o leite de saquinho e gosto horrível e o cara com grana compra leite tipo A. Como deve ser.
Vamos nos unir para criar uma consciência coletiva de que é muito feio, muito pobre, muito submisso, muito anti-nacional, muito “out”, assistar a filmes sem dublagem. É brega, antigo. Quem via filmes com legenda era minha avó! Nada de leis, regras, imposições, obrigatoriedades. Só o público nos exigindo. Como exigem as novelas. Não há leis obrigando ninguém a exibir novelas. Vamos nos tornar imprescindíveis para o público. É ele quem consome o que os que chamamos de “O Cliente” vendem. Se o público deixar claro que só vai consumir se contar com nossa participação, aí teremos valor e nosso negócio voltará a florescer. Não somos uma fábrica de peças, não somos metalúrgicos, não produzimos carros, comida ou roupas.
NÓS PRODUZIMOS ARTE!
Enquanto os donos de estúdio insistirem em que essa afirmação é uma falácia arrogante, não temos como conversar sobre nada. Os donos de estúdio têm que entender que o que produzimos é ARTE,  que temos um público, que temos fãs, que esses fãs estão de olho, que esses fãs não são um bando de garotos malucos que não têm o que fazer, são homens e mulheres que já estão com 25, 30 anos. Muitos são mais velhos do que alguns donos de estúdio. Hoje estão formados, são professores, jornalistas, pessoas da mídia, publicitários, advogados, médicos, gente adulta, competente e atuante, gente que pode fazer muito por nós, por todos nós, artistas, técnicos e donos de estúdios.
Enquanto isso não for compreendido e assimilado, não há o que conversar. Vamos ficar nessa lenga-lenga de sindicatos, briguinhas e panelinhas com listas escritas e rasgadas, com “donos de mercado” tentando ditar normas que favoreçam os lugares onde trabalham mais, com estúdios tentando esmagar a todos e provar a cada instante que ninguém vale nada, “um bando de mortos de fome que deviam ir morar embaixo da ponte” como já citou um expoente do empresariado paulistano. E uma empresa que emprega gente que não vale nada tem mais é que ter seu preço achatado cada vez mais.
O rádio cresceu no Brasil alegando que seus artistas eram os melhores do mercado. A TV seguiu o mesmo caminho. A Dublagem faz questão de alegar que trabalha com o que há de pior, de mais baixo, de mais sem valor. Como o estúdio A pode querer ter um preço melhor do que o estúdio B, se ambos alegam usar a mesma escória para realizar o trabalho?
Muita coisa tem que mudar sim. Mas eu saio da minha reclusão e do que chamam de “indiferença” se essa mudança for pra melhor. O discurso do texto diz que eu tenho que me conscientizar de que não valho tudo isso que acho que valho, que não valho nem a importância irrisória que me dão hoje, que eu tenho que descer do meu pedestal e passar a valer menos ainda pra que o estúdio que usa meus serviços possa ter um preço competitivo.
Lamento muito por essa idéia. O estúdio que usa meus serviços devia ficar feliz por fazer isso, devia contar pra todos que conta com meus serviços, devia MENTIR pro cliente dele e dizer que é MUITO DIFÍCIL contar com meus serviços, me valorizar, me engrandecer, alegar que sou muito caro e que, por isso, PRECISA COBRAR BEM!
Preferem dizer que sou escória e fazer conchavos pra cobrarem cada vez menos.
Sinto muito. Como disse Vicente Celestino, “nasci artista”. Sou artista, não abro mão de ser artista e um artista que se submete a “descer do pedestal” não é digno do nome e deve procurar outra atividade!
Quando tiverem uma idéia qualquer que inclua a construção de pedestais, a valorização do que fazemos, o uso da massa que nos adora para fins pacíficos mas eficientes, quando surgir uma vontade de agir como artistas e produtores de arte, contém comigo sem restrições.
Antes disso, fico na minha caverna.

  - Nelson Machado