13.3.07




José Augusto Carvalho - Preconceitos contra a língua - 13/03/2007

Preconceito contra a língua

José Augusto Carvalho

A revista Mátria, publicação da Confederação Nacional dos Trabalhadores em
Educação, no seu número de 8 de março de 2005, nas páginas 38-39, traz um
artigo intitulado "Feminismo e o preconceito na língua portuguesa", de
autoria da professora Raquel Felau Guisoni, que merece algumas reflexões por
causa da afirmação de que a língua portuguesa é machista. A autora baseia-se
no fato de que, havendo numa sala um maior número de mulheres do que de
homens, a concordância nominal se faz no masculino plural, como se as
mulheres fossem deixadas em segundo plano pela gramática. A autora conclui
sua análise aconselhando os profissionais da lingüística a estudar e a
modificar as regras gramaticais "machistas".

Em primeiro lugar, a autora parece confundir gênero com sexo. O sexo é uma
distinção semântica, biológica. O gênero é uma distinção gramatical,
lingüística, e, portanto, relativamente arbitrária. Em português, se eu
disser que Vera Fischer é um mulherão, estarei usando o masculino para fazer
um elogio à exuberante feminilidade da atriz.

Em português, normalmente, o aumentativo em -ão é do gênero masculino, mesmo
que a palavra-base seja feminina: casa - casarão, panela - panelão (o
sentido da palavra-base se alterou), flor - florão (o sentido da
palavra-base se alterou), voz - vozeirão, etc.

Em alemão, uma regra gramatical ensina que os diminutivos são neutros. Ora,
a palavra "Fräulein" significa "senhorita", mas, como é um diminutivo, é do
gênero neutro. Não se pode dizer que os alemães desprezam as moças
solteiras...

Em português, o plural é marcado com um afixo -s (-es). Por isso eu sei que
a palavra "pratos" está no plural. Mas não existe marca para o singular. Sei
que "prato" é singular porque não tem o -s de plural.

O mesmo fenômeno ocorre com o gênero. Sei que "deusa" é feminino porque tem
a marca de feminino, isto é, o afixo -a. Mas eu sei que "Deus" é masculino
porque não tem a marca de feminino, isto é, o masculino em português é um
gênero não-marcado assim como o singular é um número não-marcado.

Palavras como "pente", "ouro" e "mantra", por exemplo, são arbitrariamente
masculinas. Repare-se que "linotipo", por exemplo, é feminino, embora
termine em -o, e que "poema" é masculino, embora termine em -a.

As terminações -e, -o -a, chamadas vogais temáticas, são apenas
classificatórias. Assim "samba" é masculino (em francês, é "la samba",
feminino), mas "casa" é feminino, pois o -a aí não designa gênero. O -o de
"menino" também não designa gênero; mas vogal temática.

O masculino NÃO é marcado em português. "Mar", cuja vogal temática só
aparece no plural (marEs), era feminino em português antigo, como atestam
expressões atuais como "preamar", "baixa-mar".

Assim, não é por machismo que se faz a concordância no masculino quando há
muitas mulheres numa sala e apenas poucos homens, ao contrário, por
deferência: como o masculino é gênero não-marcado, usa-se o masculino para
não ofender os brios de ninguém.

Por isso, pronomes como isso, aquilo, quem, tudo, nada etc. exigem a
concordância no masculino: Nada (tudo) é "perfeito", isso é "bom", quem é
"sério", etc.

Em segundo lugar, o que os lingüistas e gramáticos deveriam fazer, para
evitar a idéia de machismo da língua, não é mudar regras, porque as regras
estão interiorizadas em cada falante, e ninguém é dono da língua.

O que eles deveriam fazer é mudar a terminologia: em lugar de gênero
masculino e feminino, deveríamos dizer gênero não-marcado e gênero marcado.

Afinal, o preconceito não está na língua, mas no falante...

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