7.11.07




Já salvou uma palavra hoje?

Quando era criança conheci muitos escoteiros, lobinhos, fadinhas etc. Não sei onde foram parar, pois nenhuma das crianças que conheço hoje em dia sabe o que é escotismo. Por que me lembrei dos escoteiros? Porque eles me contavam que tinham a obrigação de fazer pelo menos uma boa ação por dia. Essa idéia me remete à nossa língua. E se a gente fizesse pelo menos uma boa ação por dia com relação à língua portuguesa? Garanto que poderíamos ressuscitar um monte de palavras que correm risco de extinção.

A inexistência de ensino da língua portuguesa nas escolas já produziu algumas gerações de jornalistas e escritores analfabetos funcionais. Parece paradoxal afirmar que jornalistas e escritores são analfabetos funcionais, mas é isso mesmo, foi nisso que se tornaram, o amado leitor e a estimada leitora não entenderam mal.

À inexistência de ensino do português nas escolas se soma a imersão no inglês ainda em tenra idade. O primeiro contato que os jovens têm com as regras gramaticais, sintáticas e estilísticas acontece nas aulas de inglês. É preciso aprender inglês para poder trabalhar, mas o jovem só aprende inglês, ignora o vernáculo. E o pior dessa situação é que a maioria só pensa que aprendeu inglês, pois o que acredita saber é aquilo que nos outros países denominam Brazilian English com enorme desdém. Foi essa turma que acredita saber o que não sabe que inventou a expressão no break para denominar um aparelho que, lá na matriz, se chama UPS - Uninterruptible Power Supply. Experimente usar a expressão no break em conversa com angloparlantes que não saibam português. O interlocutor não vai entender nada!

É nesse ambiente que se cria a nova geração de tradutores do Brasil. Desconhecem as regras do português - na verdade, desprezam-nas, pois só tem valor o que está in English - e acreditam saber inglês - mas isso não passa de fantasia. Aprendem nos cursinhos de inglês que o chique é não usar dicionário pra nada e acabam cimentando achismos. Por exemplo, essa turma acha que a única tradução possível de The book is on the table é O livro está sobre a mesa. É muito mais idiomático dizer que o livro está na mesa ou, melhor, em cima da mesa, mas ensinaram a essa turminha que on é sobre, então tá, né? Ensinaram que find é achar, então ninguém imagina que também pode ser procurar. Quando se diz go find my shirt, em português costumamos dizer vá procurar minha camisa, mas a turminha do the book is on the table vai de vá achar minha camisa, como já ouvi e li trocentas vezes em filmes e livros. É duro de engolir.

Mas já estou tergiversando. O assunto principal é a boa ação. Pois é. A boa ação desta semana poderia ser a seguinte:
- Usar pelo menos uma vez os pronomes possessivos dele ou dela, em vez de seu ou sua. Ou, caso dele ou dela sejam excessivos, substitua seu ou sua pelo artigo definido correspondente.

Exemplos? Tá. Lá vai:

Maria saiu com o seu marido. Marido de quem, cara pálida?
Maria saiu com o marido dela. A frase deixou de ser ambígua, mas ficou redundante.
Maria saiu com o marido. Pronto! Lindo! Divino! Maravilhoso! Maria não corre mais o risco de levar uma surra de alguma esposa traída e fica claro como a água que jorra da fonte que o marido que saiu com Maria foi o dela, e não o da amiga.

Outro exemplo:

She put her hand on her head está claríssimo em inglês, aí chega a turma da tradução e tasca ela pôs a sua mão na sua cabeça. Danou-se! Não é exagero! Juro que a turma do decalque só traduz assim! Ela botou a mão na cabeça estaria tão claro quanto no inglês, não é mesmo? Está claro que a mão era dela! Se não fosse dela, aí seria obrigatório dizer de quem era. O artigo definido expressa exatamente a idéia de que o objeto pertence à pessoa de quem se fala. Em português fluente a gente diz que João quebrou a perna, e não que João quebrou a sua perna. Esse sua é um corpo estranho ali, dá a impressão de que a perna é de outra pessoa, e não do João, pois se fosse dele mesmo, bastaria dizer João quebrou a perna. Ambas as frases estão gramaticalmente perfeitas, mas não é só de gramática que se faz uma língua!

Como diriam os anglos: it's the style, stupid!

E quando devemos trocar seu e sua por dele e dela? Também é para desfazer a ambigüidade. Por exemplo: his book pode ser seu livro, mas fica ambíguo; melhor é dizer livro dele, não é mesmo? Por exemplo: This is his book. Este livro é dele, e não Este é o seu livro, concordam?

Vamos preservar a vida de dele, dela, deles, delas? Usem um dele, dela, deles, delas pelo menos uma vez por semana no lugar desse cacoete horroroso de só usar seu e sua. Que tal? Não dói!

O uso do artigo definido em substituição ao pronome possessivo é uma característica singular da língua portuguesa e sempre foi praticado sem necessidade de curso de especialização. O excesso de traduções e, em conseqüência disso, a escassez de tradutores competentes, levou ao uso indiscriminado do decalque. Em inglês, o uso de my, your, his, her, their etc. é massificado, mas as características da língua o exigem. Os falantes de inglês morrem de inveja desses recursos lindos que a língua portuguesa oferece, dessa riqueza sintática que só as línguas românicas têm, mas os falantes das línguas românicas, por não ter o mapa da mina, acabam invejando a falta de recursos do inglês, que exige a repetição incessante de pronomes, pessoais e possessivos, justamente por não contar com as desinências das pessoas verbais e com o artigo definido para designar o que é próprio da pessoa que fala ou de quem se fala.

Vamos traduzir, minha gente, mas, por favor, não vamos desfigurar o português!

Labels: ,

6 Comments:

Blogger Cristine Martin said...

Excelente artigo, Jussara!

Temos que fazer como os escoteiros, ficar "sempre alerta" pra não cair na armadilha do excesso pronominal (e outras); o difícil é mudar os maus hábitos, mas com uma boa ação por dia, a gente chega lá!

Um beijo,

Cristine

09:36  
Blogger Unknown said...

Jussara, você arrasou. Uma sugestão para o próximo post é, tipo assim, "eu sou uma tradutora". hehe... Claro que o "tipo assim" foi só uma brincadeira, mas dói ouvir o tal de "uma/um qualquer coisa".
Abraço,
Regina

10:19  
Anonymous Anonymous said...

Oi! Eu faço uns bicos como tradutor e gostei bastante desse post, pois é deprimente ver o trabalho porco dos outros por aí. Resolvi linkar o teu blog no meu, o Cuarto dos Fundos.

Abraço.

00:25  
Blogger Nelson Machado said...

This comment has been removed by the author.

17:44  
Blogger Nelson Machado said...

Que maravilha!!! Jussara Simões, sou seu fã mais invejoso!!! Eu queria muito ter escrito isso!

17:45  
Blogger O HOMEM SEM MEDO said...

Um "salve!" pra Jussara, que mandou muito bem no português.
.
Um "salve!" pra Jussara que mandou muito bem no português.
.
Há ainda quem não reconheça a diferença que uma mínima vírgula faz pra estrutura, não acha? Vejo, com alguma frenquência, vírgulas PEDIDAS como PERDIDAS.

Mas isso é apenas palpite pra outras histórias...
Muito bom, seu texto.

Salve, JPS!

09:06  

Post a Comment

Subscribe to Post Comments [Atom]

<< Home