14.1.10




Possuir ou Ter?


(O Beijo, de Rodin)

Certas manias que entram "na moda" - e a gente nem consegue imaginar de onde saíram - acabam tornando-se hilárias. O artigo abaixo, contribuição do dr. Simônides Bacelar, médico e professor de Brasília, sempre trabalhando em prol do bom uso e do bom entendimento da língua portuguesa, é utilíssimo e sério. A gozadora sou eu, que não consigo parar de pensar em coisas impróprias para menores quando leio ou ouço que "fulano possui uma irmã", "beltrano possui duas filhas" etc. - ai, que gente mais incestuosa! Ainda bem que incesto não é crime no Brasil, senão essa turma toda que só usa o verbo possuir no lugar de ter e de tantos sinônimos, já estaria na cadeia só porque aderiu a essa moda sem pé nem cabeça de trocar tudo por possuir.

E o colocar? Agora até galinha coloca ovo! A coisa assumiu proporções inacreditáveis! Até em histórias eróticas já tem gente que coloca aquilo naquilo! É difícil de engolir! (Sim, tem duplo sentido ou quantos sentidos vocês quiserem - faço qualquer coisas por uma gargalhada!) Mas o colocar vai ficar para uma próxima ocasião. Hoje é dia do possuir e aqui está o texto do prof. Simônides Bacelar. Vamos aprender com ele?


Possuir ou ter?

O verbo possuir tem sido difusamente usado no sentido de ter - o que lhe dá legitimidade de uso nesse sentido e bons dicionários trazem essa conotação. Mas em alguns casos, parece que fica inadequado tal uso, como em "Paciente possui o sinal de Blumberg", "A coreia possui vários graus de tremores", "O paciente possui pressão arterial alta" e outros casos questionáveis.

Há ainda dois sentidos de possuir: o sexual e o espiritual. Nesse contexto, possuir filhos ou irmãs pode lembrar cargas pejorativas. A expressão “possuir inimigos” traz interpretações interessantes. São também trechos de uso comum dizer que os espíritos possuem as pessoas.

Bons profissionais e estudiosos de letras têm questionado usos dessa natureza, o que convém observar.

Deve-se evitar o uso de possuir como simples sinônimo de ter (Sérgio Nogueira da Silva, O português do dia-a-dia, 2004, p. 65).

Rigorosamente, possuir tem sentido de ser proprietário de, ser dono de, ter a posse de, ter a priopriedade de: possuir objetos, bens, documentos (L. Garcia, Manual de redação e estilo, 1996; E. Martins, Manual de redação e estilo, 1997; S. N. Silva ob. cit.).

Os dicionários dão esse sentido em primeiro lugar, o que indica ser esse seu primeiro sentido. Possuir vem do latim possidere, tomar posse de, ser senhor de, apoderar-se de; de potis, senhor de (A. Ferreira, Dic. lat. port., 1996).

Posse indica propriedade, ato ou efeito de se apossar de algo, como se vê como sentido essencial nos dicionários. Embora a linguagem geral justifique seu uso em muitos outros sentidos, seu uso na acepção exata tem correspondência com os preceitos do estilo científico da precisão dos termos, o que propicia mais clareza.


Possuir tem sinonímia com: ter, dispor, contar com, haver, conter, encerrar, apresentar, trazer, melhores opções em lugar do criticado possuir fora de seu sentido próprio. Deve-se evitar usos como:

“O Instituto possui (dispõe de, coordena) mestrado e doutorado”,

“A quimioterapia possui (provoca) vários efeitos colaterais”,

“O documento possui (tem) rasuras e anotações”,

“O paciente possui (dispõe de, conta com) vários exames”,

“Possui (tem) boa reputação”,

“O hospital possui (apresenta) muitos defeitos”,

“A operação possui (traz) muitas vantagens”,

“O paciente possui (tem, é pai de) três filhos”,

“O paciente possui (está com) o diagnóstico de aneurisma aórtico”,

“Paciente possuía (tinha) lipomatose, hipoproteinemia e episódios de hipoglicemia”,

“O paciente possui (apresenta) hérnia incisional”,

“Os periódicos científicos possuem (compartilham) características comuns”,

“O pâncreas possui (constitui-se de) cabeça corpo e cauda”,

“ O orifício anal possuía (tinha) marcas”,

“ O paciente possuía (trazia) vária lesões”,

“Possuía (tinha) boa acuidade visual”,

“O profissional possui (detém) o título de melhor da classe”,

“O hospital possui (conta com) 500 leitos”,

“O enfermo possui (apresenta) história de dor abdominal”,

“Paciente possui (tem) 85 anos”,

“O artigo não possui (não é dotado de) fundamentação científica”,

“Relataram possuir (ter) dificuldades para alimentar-se”,

“Paciente possui (com) história familiar de obesidade”,

“O escorpião possui (tem) hábitos noturnos”,

“A paciente diabética possuía (tinha) o sinal da prece” e semelhantes.

Outras opções substitutivas a depender do contexto da frase: conter, encerrar, apresentar, ostentar, trazer, guardar, compreender, incluir, portar, gozar de, abranger, envolver, sustentar, deter, desfrutar de.

É questionável a grafia possue por possui. Os verbos terminados por -uir (possuir, concluir, contribuir, incluir, excluir, substituir, construir) devem ser grafados com i na segunda e na terceira pessoa do singular do presente do indicativo (Cipro Neto, 2003, p. 71): possuis, possui, excluis, exclui, concluis, conclui, contribuis, contribui, substituis, substitui. São exceções, verbos que têm na segunda e na terceira pessoas do singular do presente do indicativo: segues, segue, consegues, consegue, persegues, persegue.

Não podem constituir erros os usos de linguagem dados pelo povo, pois são formas existentes e úteis á comunicação geral. Mas em situações de formalidade, convém observar, sem preconceitos ou imposições radicais, o estilo próprio nessas situações para que não haja questionamentos.

“Nos trabalhos científicos, emprega-se a linguagem denotativa, isto é, cada palavra deve apresentar seu sentido próprio, referencial e não dar margem a outras interpretações” (Maria Margarida de Andrade, Introd. à metodologia do trabalho científico, 2003, p. 101).


Simônides Bacelar, Brasília, DF
Jussara Simões, Niterói, RJ


E, dando continuidade à tradição que resolvi inventar aqui recentemente, de trazer uma música que tenha alguma relação com o tema do dia, aqui está a palavra possuir em uma obra-prima do cancioneiro popular: (...e vem me seduzir, me possuir, me infernizar...)





E, para completar, uma do Guilherme Arantes, que se chama Mania de possuir (bem apropriada para o tema de hoje!)


8.1.10




Adeus, meu amigo Kiko






Eu queria escrever alguma coisa a respeito do meu amigo que se foi ontem.

Mas será que existem palavras para descrever um herói que enfrentou doenças graves durante esses 16 anos de convivência, amizade, carinho, afeto? E devia ter uns 3 anos de idade quando me escolheu, na rua, para ser meu dono.

Ele tinha uma vontade de viver que me surpreendia. A cada doença, a força que ele fazia para se curar, queria muito viver. E, quanto mais vivia, mais se aproximava de mim, mais me olhava com carinha de afeto e gratidão.

Era um gato roqueiro, que ligava o ronrom sempre que ouvia Jimi Hendrix. E foi em homenagem a ele que acabou ganhando o pomposo nome de Francisco Pinto Hendrix. Hendrix de parte de padrinho e Pinto da parte da mãe adotiva.

Ele também não tolerava desafinação. Bastava ouvir alguém desafinar que ele começava a miar muito alto, parecia que desafinação lhe dava dor de ouvido.

Eu teria tantas coisas para contar desse gatinho caolho, que acabaria escrevendo um livro. Agora ele descansou depois de uma vida tão acidentada.

A vida é assim. A vida é a única doença incurável. Dela ninguém sai vivo.

Kiko, você foi um grande companheiro, nas horas de alegria e nas horas de tristeza. Nunca permitiu que eu o esquecesse do lado de fora, sempre tinha um gesto qualquer de gratidão porque eu o trouxe para casa, não o deixei ao relento, onde o encontrei com um olho furado e uma facada no lombo.

Chega de lágrimas. Que isto sirva de homenagem ao meu grande amigo que se foi.




Kiko é o siamês das duas fotos abaixo.
Nesta foto ele está com a Lea.

Nesta foto ele está com a Lorinha (também falecida)